terça-feira, maio 31, 2005

Feira do Livro e grau de coolness das editoras

A Feira do Livro de Lisboa traz consigo uma série de impressões vívidas: barracos. Calor. Capas coloridas, encarquilhadas pelo calor. Muito calor. Grande concentração de meninas em idade universitária e trajes reveladores por causa do calor. Já falei no calor?

Mas acima de tudo, a Feira do Livro é democrática. Todas as editoras, ricas ou pobres, publiquem James Joyce ou Paulo Coelho, cool ou uncool, estão instaladas nos mesmos barracos miseráveis de campo de refugiados. Para ser um cenário de catástrofe humanitária, só faltam os cães coxos, a tenda da AMI e o panelão de arroz ao lume; as moscas e o calor já lá estão.

O que nos leva ao tema de hoje: editoras cool e uncool.

Existe uma verdadeira hierarquia das editoras em função do prestígio que, com razão de ser ou não, lhes está associado. Em termos de imagem social, é fácil de detectar em certas pessoas uma relutância em admitir que se adquiriram livros desta ou daquela editora, enquanto que outras surgem sistematicamente nas listas de livros recomendados pelos críticos da especialidade.

Um exemplo: é possível comparar a Assírio e Alvim, com as suas edições de poesia e lombadas negras, com a Europa-América, com os seus livros de bolso baratuchos e as suas colecções de livros práticos sobre os temas mais bizarros? É como comparar um Bentley com um Fiat Punto.

O que se segue é uma tentativa de fazer um levantamento das editoras cool e uncool de Portugal, tendo em conta os seguintes indicadores:

Editoras cool:

Capas com design austero e minimalista, normalmente quase idêntico para todas as publicações da editora

Publicação de obras (por vezes merecidamente) obscuras

Capas das quais consta "traduzido do swahili/búlgaro/kimbundu/qualquer outra língua invulgar por"

Publicação de longamente aguardadas e muito elogiadas novas traduções que por vezes poucas diferenças têm das já existentes em editoras menos cool (case in point o Proust de Pedro Tamen)

Editoras uncool:

Publicação de literatura light ou literatura de género (romances históricos para o povão, ficção científica ou romances policiais)

Capas agressivas

Associação a classes sociais menos cool

---------

Seguem-se exemplos:

Editoras cool

Cavalo de Ferro (a mais cool de todas; as suas edições são entusiasticamente discutidas nas capelinhas meses antes de serem lançadas no mercado)

Guimarães

Assírio e Alvim

Relógio d’Água

Cotovia (capas minimalistas e as novas traduções de Homero)

Presença (tem aquelas novas traduções dos russos)

Gradiva (se não é cool, devia ser; o melhor logo de Portugal, em qualquer ramo de actividade)

Editoras que podem ser cool ou não dependendo da vossa orientação política

Caminho (editora proletária)

Verbo (editora reaccionária)

Editoras uncool

Europa-América (já os merdas dos meus professores de liceu chamavam a atenção para as "más traduções" das PEA)

Círculo de Leitores (foi durante anos o único meio de acesso ao livro das classes médias suburbanas; serviu para decorar inúmeras salas de estar e encheu estantes inteiras de livros que ninguém leu)

Livros do Brasil (por causa das hediondas capas da colecção "Dois Mundos", e pela política de reedições: reimprimem Pearl Buck, mas não Thomas Mann?!?)

Oficina do Livro (publica Margarida Rebelo Pinto; é preciso dizer mais?)

Terramar (nasceu num vão de escada de Mem-Martins, de onde num certo sentido nunca saiu, e o seu primeiro grande êxito editorial foi a série "Onde Está Wally?", uma das mais incompreensíveis modas do início dos anos 90)

Quetzal (nos meus tempos de estudante - i.e. quando não havia paperbacks e os livros eram octavos, quartos ou folios - a Quetzal era bastante cool e publicava autores como Pascal Quignard; hoje reconverteu-se em editora de literatura light e "temas da actualidade")

Âmbar/Texto Editora/Porto Editora (e todas as que produzem material ou livros escolares)

Anúncio gratuito

Uma forma de agradecer às pessoas cujos blogs me acabaram por convencer da necessidade de eu próprio iniciar um.

Mel com Cicuta

Uma visão sarcástica e misantrópica da vida urbana e da política actuais, com o sentido de humor politicamente incorrecto que se reconhece à autora. Quase que lhe perdoo o ser reaccionária e gostar de Mark Rothko.

Convicções

Apesar de apoiar entusiasticamente e à partida quaisquer perseguições aos herejes que Bento XVI entenda iniciar, não deixo de dar aqui um espaço a convicções religiosas alternativas. Inclui ainda poemas e comentário sobre temas actuais.

****************

Quer ver o seu blog publicitado no Marsch, marsch!, blog de grande notoriedade pública, elevadíssimo número de leitores, e o preferido das classes A e B?

Dirija a sua proposta para Avenida dos Sacanas Gananciosos e das Comissões de 10%, 21. Facilidades de pagamento. Aceitam-se Visa, Mastercard, American Express, cargos escandalosamente bem remunerados em gabinetes ministeriais ou empresas do sector público, viaturas oficiais diversas e apartamentos em Monte Carlo. Prostitutas brasileiras de bar de alterne compram, quando muito, um árbitro da 2ª B.

terça-feira, maio 17, 2005

Espírito de contradição e muita paciência

Ser adepto do FC Porto fora do habitat natural dos portistas demonstra espírito de contradição e exige muita paciência. Ao longo dos anos, vi-me na obrigação de justificar não ser adepto do Benfica ou do Sporting, como todos os bons portugueses aparentemente são, uma média de 10 vezes por dia. Mas mais ainda - há também que defender o FC Porto de ataques de gente que lhe tem quase tanto asco como o Saldanha Sanches tem pelas autarquias locais.

Das centenas de discussões que tive, posso classificar os FC Porto-fóbicos em quatro categorias básicas:

Aqueles para quem dá muito trabalho pensar

Estes são os que, quando confrontados com as vitórias nacionais e internacionais do FC Porto, e com as falcatruas e favorecimentos de que os seus próprios clubes beneficiaram e beneficiam, abandonam a discussão encolhendo os ombros e dizendo: "Não interessa - o Pinto da Costa é que compra os árbitros todos."

Os Indignados

Para estes, as vitórias do FC Porto são ofensas pessoais. Muito pessoais. Quando sabem que sou adepto do Porto, enxofram-se e, de indicador apontado à minha cara como uma arma, bradam "Como é que explicas que...", e começam o rol das intoleráveis desonestidades em que assenta o domínio do futebol português pelo FC Porto nos últimos anos, bem como os repetidos e humilhantes insucessos do seu próprio clube. A estes, deixo-os esvaziar a sua fúria. Antes em mim do que na estrada, nalgum condutor que notem que tenha um galhardete do FCP pendurado no retrovisor, ou nalgum GNR com pronúncia do Norte.

Os Abstrusos

Esta categoria corresponde mais ou menos à dos espectadores fiéis de programas de paineleiros de futebol. Lêm todos os diários desportivos sem falhar um número e têm uma capacidade impressionante para apreender uma série de factos inúteis, que arquivam para uso no que entendem ser o momento adequado. Quando chegam ao momento de apresentar os seus argumentos, lá salta do seu arquivo alguma contratação de há quinze anos atrás, uma percentagem de empresário, obscura trica ou insignificante alteração de regulamentos da Federação ou da Liga na qual, asseveram, houve mão de Pinto da Costa.

Palma de ouro nesta categoria: um colega de liceu que, para demonstrar que "lá no Norte é só corrupção", explicou como os árbitros da AF do Porto podiam ser indicados como candidatos para promoção a árbitros internacionais desde que tivessem o 9º ano de escolaridade, enquanto a AF de Lisboa exigia o 12º ano.

Os Moderados

O grupo mais exasperante, num certo sentido. Depois de me ouvirem pacientemente - e por vezes até acenando com a cabeça em sinal de concordância - enquanto demonstrava que todos os grandes são beneficiados pelas arbitragens nos jogos contra os clubes pequenos, fazendo-me acreditar que, pela primeira vez na vida, tinha conseguido convencer alguém, dizem "Sim, é verdade, mas tens de admitir que o FC Porto é mais beneficiado".

domingo, maio 15, 2005

O Jornal da Tarde

Como o subtítulo deste blog também faz referência a "assuntos do interesse das massas populares", e para demonstrar que posso ser um tótó da História Militar, mas ao menos sou um tótó ecléctico, segue-se a primeira tentativa de uma mensagem de interesse geral.

O tema é o Jornal da Tarde (todos os dias na RTP1 às 13:00).

A maior parte dos defeitos do Jornal da Tarde são comuns a todos os serviços informativos da TV portuguesa: directos sem qualquer razão de ser de locais onde já nada acontece (porque não gravá-los alguns minutos antes, e evitar os riscos do ad lib?), "jornalistas" que põem as respostas na boca dos entrevistados (porque raio os entrevistam sequer, então?), cobertura de irrelevâncias que nem aos jornais regionais interessam, e uma duração totalmente injustificada, na maior parte ocupada com questionários a transeuntes e a habitantes da parvalheira em causa, que invariavelmente descrevem os seus vizinhos psicopatas como "pessoas pacatas".

Mais valia noticiar o que fosse efectivamente notícia (o que, em Portugal, se despachava em cinco minutos) e depois anunciar: "Como em Portugal felizmente nunca se passa nada, vamos ocupar o resto do tempo deste telejornal com imagens de um gatinho a brincar com um novelo de lã/câmaras ocultas num balneário de mulheres algures na Escandinávia/uma selecção dos melhores golos do FC Porto nas últimas dez temporadas".

Mas o Jornal da Tarde inclui dois motivos de interesse adicionais:

Paula Rebelo, uma mulher aterradora com cara de ovelha, um penteado que esperaríamos ver num bar de alterne em Cabeceiras de Basto, voz cavernosa e pronúncia inenarrável ("Estes exames são fawitos") que quase todos os dias e infalivelmente ao fim de cerca de 20 minutos do noticiário, nos aparece com uma "reportagem" do Hospital de São João sobre algum revolucionário método de lavagem das fronhas das almofadas ou sobre as falhas do quadro de electricidade na Cirurgia II. Haja ou não haja algo que valha a pena reportar, oportuna ou inoportunamente, faça chuva ou faça sol, Paula Rebelo lá está. Enfim - suponho que seja mais fácil do que andar à procura da notícia.

Alberto Serra, mecânico de automóveis de formação, animador cultural nos tempos do PREC e antigo jornalista regional, que prodigaliza a respeito dos assuntos mais triviais tiradas líricas e trocadilhos patetas que até ao espectador provocarão embaraço, tudo transmitido com as ênfases e pausas dramáticas de um actor de grupo recreativo de província. Pelas suas próprias palavras: "Os factos apenas dão das pessoas o exterior, para lhes captar a alma é preciso a literatura e a poesia". Pensem nos justamente celebrados chavões de Gabriel Alves, multipliquem por dez mil e nem chegam perto.

Alberto Serra: um repórter para além da espuma dos discursos

Eu tenho fé na evolução da Humanidade. Espero que, daqui a cinco ou dez anos, tudo isto pareça penoso, ridículo, quase inacreditável.

Mas entretanto, vejam e desesperem.

Coming up next: Ingres como retratista; porque razão 95% da História Militar da Antiguidade Clássica é pura perda de tempo; Feira do Livro; Primeira Guerra Mundial: o revisionismo em marcha; reflexão sobre os introvertidos a propósito de uma passagem de Proust; fui aos subúrbios e sobrevivi para contar a história; novidades da Osprey Campaign Series; Giorgio de Chirico; paineleiros do futebol; demonstração de como as colunas de João Carlos Espada são afinal finos exemplos de sátira; and many, many more.

sábado, maio 14, 2005

Clibanarius?

Cada vez há menos desculpas para a ignorância. Hoje em dia, não há quase nenhuma dúvida que uma busca no Google ou a Wikipedia não esclareçam.

O significado da palavra Clibanarius parece ser uma das excepções. Quando introduzida num motor de busca, o resultado é uma lista de sites sobre uma espécie de caranguejo eremita.

Daí que seja preciso dar uns links para artigos que esclareçam o que era, afinal, um clibanarius.

Artigo Wikipedia sobre catafractários; os clibanarii eram uma modalidade de catafractários.

Artigo da Wikipedia alemã sobre clibanarii, com links para páginas com imagens (na maior parte ilustrações de Angus McBride roubadas de livros da Osprey).

E uma reconstituição moderna de clibanarii romanos:

Clibanarii romanos


Enquanto buscava artigos e imagens na WWW, encontrei um daqueles sites de entusiastas que só podem ser feitos por quem tem tempo livre a mais:

Satrapa1

Tem vários artigos sobre temas invulgares e pouco tratados de História Antiga, em particular de História Militar, e a apresentação gráfica é faustosa (i.e. tem bonecos e mapas muito giros).

sexta-feira, maio 13, 2005

Gary Brecher

O 'zine Exile é publicado em Moscovo por expatriados americanos desde meados dos anos 90.

Entre outros assuntos de interesse óbvio para o entusiasta de História Militar como levantamentos dos melhores points de prostituição de luxo em Moscovo, o Exile conta com o que só pode ser um dos melhores colunistas de assuntos militares da WWW.

O título da coluna diz tudo: The War Nerd. O autor(?) dá pelo nome de Gary Brecher, e apresenta-se como um escravo de cubículo obeso, sexualmente frustrado e mal cheiroso residente em Fresno. Como já vi sugerido algures, trata-se muito possivelmente da capa para um trabalho colectivo dos editores do próprio Exile.

"Gary Brecher" é daqueles entusiastas tótós que se diverte genuinamente com a guerra. Os seus artigos transbordam de invectivas coloridas, coloquialismos americanos e sarcasmo com a subtileza de uma carga de tijolos. Mas de toda esta chocarrice e aparente infantilidade resultam algumas linhas de fundo bem perspicazes: a guerra como nós a vemos nesses odiosos documentários triunfalistas sobre os aliados ocidentais na 2ª GM, a guerra entre Estados e exércitos regulares obedecendo a um Direito da Guerra, codificado ou não, e a propósitos políticos bem definidos tal como a conhecemos desde meados do século XVII, é a excepção, e não a regra. A regra é que a guerra é violência anárquica e sem sentido, que surge quase espontaneamente e que ninguém controla. É uma ideia que se pode encontrar em Kalevi J. Holsti, por exemplo.

Gary Brecher não rejeita qualificar como guerra o conflito sem início e sem fim na zona dos Grandes Lagos, onde as forças "militares" não têm objectivos estratégico-militares e muito menos político-estratégicos definidos e vivem do que conseguem roubar aos civis. Antes do surgimento dos Estados soberanos na Europa, todas ou quase todas as guerras assumiam estas características, e pouco ou nada as separava do banditismo.

Daí que Gary Brecher caia num certo amoralismo: não o chocam minimamente o terrorismo sistemático dos insurrectos iraquianos, ou o recurso a represálias, assassinatos ou a "guerra suja" da parte de americanos ou israelitas. Neste ponto, Brecher é totalmente coerente. Tough shit - guerra é guerra, venham as atrocidades do lado americano ou dos jihadis.

Um pouco como sucede como Michel Houellebecq, temos aqui um autor (?)que faz de tudo para chocar, para épater le bourgeouis. Mas o que ele tem para dizer - e não tenham dúvidas, ele tem muito para dizer - dá que pensar.

Arquivo War Nerd